quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

ABANDONEI A VILA


 1911, I and the Village, Marc Chagall


ABANDONEI A VILA


Abandonei a vila, não soube administrar a casa com os sentimentos. Misturei ambos, triturei-os até sentir sangrar o peito, culpa de ninguém, culpa de um sentir de nada que me tem arrastado até à solidão. O amor não me recebeu, deixou-me à porta. Vislumbrei o hall, pequeno, vazio, apercebi-me que existiam umas escadas para o andar superior, não sei a sua dimensão, ignorei o caminho, desviei os olhos para as paredes, manchas de humidade, nalguns locais bolor, deixado por outras chuvas que não a minha, chuva de lágrimas. Apesar de haver tido o cuidado de esconder a paixão, tenho-a escravizada. As minhas lágrimas são como comboios, apitam nas curvas, ninguém vê, escutam-nas ao longe. São minhas! Avisam que aí vêem com olhos de carvão, se elas soubessem como são sagazes, como são lúcidas. Em segredo!
Sempre me movi entre quartos arrumados. Os vidros das janelas a deixarem ver o que vai por fora. Este hall é portador de fantasmas, nenhum sentimento, o ar quente alastra pela cal, obsessivamente. Esta casa ao fim da vila sempre me fez estremecer de medo. Sei-o agora! Quase nada do que lá vivi foi perfeito, foi uma casa de enganos, de corpos vestidos de pássaros, que rapidamente bateram asas. Corpos sem contornos, corpos de memórias deslumbradas e mórbidas.
Não me parece possível comunicar.
Em precário silêncio viro as costas e fecho a porta.
Sinto na boca as palavras que não quiseram ouvir. Recuso a calúnia. Cada gesto, cada passo, abre uma cratera na rua, para não mais voltar, para ninguém mais me levar.
Abandonei a vila, a vida de infância tocou-me no meu quotidiano, enchendo-me ao de leve com a esperança que a distância que me separa dela seja uma viagem pequena.
Amar numa casa de campo fez com que me aparecessem fissuras em redor das ideias… Mas não estou triste, vou a caminho de encontrar domicílio certo onde o medo das palavras dos outros não tenha dicionário próprio nem interpretação personalizada.
O coração tornou-se um mapa decifrável. Aqui, na vila ou numa cidade grande o importante é não permitir que se confunda auto-estradas com estradas secundárias, até porque atalhos todos conhecem.
Quando me voltarem a perguntar porque abandonei a vila a resposta está simplificada:
-Porque tenho esperança que o medo das palavras não passe do hall de entrada de uma qualquer casa de uma qualquer vila. Aí, regressarei já sem crateras na rua e subirei as escadas para o andar superior.
Depois, depois que o medo que fiz meu se esqueça que teve significado.




10/03/06

JFV
in Revista de artes e Ideias n.º 8, «O Medo», Coimbra: Alma Azul, 2006

5 comentários:

  1. Amo este texto, já sabes. É como se tudo fosse muito cristalino ao olhar, apesar de olhado através de uma janela em cujos vidros escorre a água da chuva, criando espaços cegos e outros de ver. É belíssimo este relato que depois não é, mas algo como lavagem de uma alma com histórias guardadas, por contar, que querem apenas assomar à janela, para se libertarem da prisão de dentro e da liberdade de fora, que não alcançam. Não sei explicar, baralho as mãos, mas é muito forte esta prosa, como todas as tuas incursões pela dita. Quando te leio perco a vontade de escrever, percebo que não nasci para isto. A vantagem é que aprendo muito. Beijinho.

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  2. O comentário acima é meu, como deves ter já concluído. Ninguém se entende com estas identificações do google...
    Ana Vassalo

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  3. Talvez o único texto que me saltou das mãos, das entranhas, da profundeza da dor e do desalento. O tempo passou, a ferida ainda não sarou, mas a recordação do motivo que me levou a escreve-lo (e para quem) minoriza ao expor esse foi que não foi...E eis-me no meu melhor: não saber que te dizer quando comentas :)
    Obrigado, minha querida, por tão belas e sentidas palavras.
    Beijinho

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  4. ainda me lembro do 1º "draft"...

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  5. o 1º "draft" foi escrito pela dor após a rejeição. Ainda hoje não tenho a certeza se conseguirei regressar sem que as crateras daquela rua reabram.

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