quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

ENSAIO






 ALEXANDER TIKHOMIROV theater



ENSAIO


Se me chamarem
e não responder
estarei do outro lado
da aventura
entre partos
de teatro e de retratos.

Numa sala de ensaio
ou numa moldura
encontrarão a placenta
das vozes e das poses.

Alimento personagens
que saciam a vontade ocasional
de ter um sentir oculto.
Por vezes a fome de lhes dar vida
torna-se em impaciência inimaginável
de homens e mulheres doidos
que simbolicamente fogem de mim
para a natureza
do que é verdade ou mentira.

Ensaio vidas alheias,
umas batem-me
outras beijam-me
e em todas sou feliz.

Até abrir o pano
ou que a luz se acenda,
estarei do outro lado da aventura.
Até lá,
o meu corpo e mente
estarão entre o parto e o retrato
preso numa espécie de encantamento.

Quando soar a palavra merda,
saibam que foram águas que rebentaram.
Serei pai ou mãe de actos assumidos.
Para o bem e para o mal
serei o fazedor de vida onde habitam
os meus nervos.

Todas as palavras que não me pertencem
é uma peça que oscila
entre vidas que me ultrapassam,
entre elas a minha.
Imagens representando
na barriga da terra.
Minha mãe de prazeres.

JFV

10 de Abril de 2012

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

ZERO.ZERO

Zero.Zero

Sensações
tantas...
Abrindo caminho por caminhos de coisa nenhuma
(Zero.Zero)
Tantos...
Que dão passos ao revés
e encontram-se no subúrbio
da cidade do eu.
Vazios
redondos
rebolando
pelas escadas de um prédio
de egos
lamentos
convulsões
tormentos.

Ai, quem me ama?
Quem me adorna de sementes?
Preciso crescer.
Tenho um jardim plantado
de ócios secos
e comiserações várias!

Ai, quem me ama?
Quem sobe ao meu andar
e me mata a sensação
desta estranheza
de os espelhos só reflectirem
o que não sou
e o que não quero?

Há mundo para além de mim...
Não me idolatrem.
Não me façam vénias.
Reciclem-me as lágrimas.
Esgotá-las é deixar de sentir quem sou.
Eu
e a minha cegueira
Eu
e o meu 3º mundo interior.
(Zero.Zero)

Preciso de gente que partilhe os seus jardins
E prédios com vizinhos
A quem possa dizer:

Os meus olhos já vêem além de mim?
Tantas!
Tantos!

Para enxergar basta
saber tabuada,
Sair da noite,
de frente do espelho,
dançar ao sol
e fixar a realidade.

JFV

Quando chegar a casa ainda estarás lá?

Quando chegar a casa ainda estarás lá?
Num 5º andar com vista para o mar.
Perto do principio do mar.
Ainda haverá à porta o teu lugar de estacionamento.
Ainda haverá a escada de pedra, suja da caliça das paredes, subida por nós sem darmos conta de quantos degraus tem, tal a sofreguidão de chegarmos ao quarto.
É uma casa nova já a necessitar de obras, assim como o nosso amor rejuvenesce, a casa erguer-se-á com o contacto do nosso desejo.
Ainda haverá a mesinha de cabeceira, o candeeiro cambaleante desligando-se a uns pés inquietos.
Ainda haverá beatas no cinzeiro ao lado de um fio de ouro e de um relógio dos chineses, sem pilhas. Não marca as horas porque as horas as utilizamos sem contar… amadamente!
As almofadas beje e laranja atiradas ao chão conjuntamente com os cobertores numa mistura cromática.
(A casa ainda é fria em Março).
Ainda haverá calças, camisolas, sapatos, roupa interior, deixadas não se sabe onde. (Felizmente o quarto é pequeno e os esconderijos poucos).
As palavras de amor, mesmo as mais grosseiras estão nos nossos ouvidos, soam a uma viagem começada. Não sabemos como e porque começou…
Dissemos que ficaríamos para sempre, não dissemos quando o sempre chegará.
Duas, três semanas?
Um ano?
As nossas rugas terão o mesmo significado?
O nosso corpo terá a mesma importância?
A tua beleza decerto continuará intacta!
No tempo que não sabemos quanto, mereces ouvir palavras de amor… na ausência.
Deixa lá!
Quando chegar, só, ao 5º andar, tenho a nossa história. Parte da nossa história.
Entrarei, abraço-me… sei que estiveste aqui!
Ainda haverá a porta por onde sairei à procura da primeira cerveja. Até à terceira pergunto-me quando te terei de novo em casa, no quarto, de vires até mim.
De esperar por ti?
Haverá sempre a casa das recordações, na mesinha de cabeceira uma fotografia imaginária, tua, a sorrir, com a mão esquerda na face a desafiar-me para te acompanhar ao outro lado da moldura.
Levaste o fio de ouro, ficou o relógio dos chineses já com pilhas, diminuindo o tempo.
À oitava cerveja, já estou do outro lado da moldura acompanhando-te, respondendo aos apelos da solidão
Deixei de beber!
Agora espero que o telemóvel toque, anunciando que não estou só nem necessito de tropeçar em latas de cerveja vazias nem olhar para umas escadas onde a caliça se amontoa para dizer:
Há momentos felizes!
Ou não?

JFV




terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Vi pelo teus olhos


 Beata Sasik



Para Maribel

Vi pelo teus olhos



Vi pelos teus olhos uma flor ser feliz.
Tem o encanto das pétalas
que favorecem o brilho do olhar
ao sentires os poetas de vidas em liberdade.

Vi a mulher-primavera a não cerrar as pálpebras
nem quando o polen se mistura
com os gritos das ervas daninhas.

Vi o teu canto entre canteiros
a salvo dos vermes
porque é terno e consistente
e  cresce na carne como rosas vermelhas
que a tua alma deixa frescas.

Vi como semeias o amor
onde crescem raizes com a consciência
das grandes viagens  que abrem portas
às sensações da poesia.

Vi a confiança de um sorriso
fixando em mim o que sentem as flores
quando o cansaço se converte em esperança.

O que vi pelos teus olhos
floresce na amizade,
e na vida também.

JFV

Pássaro


 Vénus e Pássaro-Milton Dacosta





Pássaro



Deixa-me voltar,
Meu amor.
As minhas asas
Não têm penas
Longe de ti.

Sobrevoar o teu coração.
Poisar nas manhãs
Do teu desejo.

Deixa-me voltar,
Meu amor.
As minhas asas
Precisam de amarar,
No teu mar
De paixão.

Volto nu
Veste-me com teu corpo,
Deixa que morra entre o teu ninho,
Meu amor.




23/10/2009

Olhão


A dor não respeita as almas limpas


 Pain By Nigel Tomm





A dor não respeita as almas limpas,
vagueia
vigia
de bom grado
os enfraquecidos.
Assume a grande festa
do berço à urna.
É a metamorfose
da liberdade da alma
em cárcere da vida.
A dor só se respeita a si própria,
assume o comando
desenha o nosso percurso
invade-nos
enclausura-se no corpo
e assoma pelos olhos
cumprimentando
a alegria que passa ao longe.

JFV

sábado, 26 de janeiro de 2013

Vejo o fim todos os dias


 Alzheimer's, by David Chelsea



Para alguém muito próximo que é portadora de Alzheimer


Vejo o fim todos os dias,
do alto do tempo que é sentir tudo
o que o corpo e a mente me mente,
me esconde,
e me faz zangar com a vida.

Nada é já o que a vida dá.

Sombras desses dias
em que o principio
era só pensar em ser feliz
caíram hoje no tempo e no espaço
e no sonho do que seria viver
só com a intenção de um olhar!

JFV

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Vazio




Vazio

E agora?
Perco o tempo em labirintos de tristeza
no infinito do que nada reflecte, só porque de mim
sobram sensações invisíveis.
Não me avisto, não me adivinho
sou todos os objectos de uma casa desarrumada,
uma preguiça
um silêncio
e alguém distraído do presente.

E agora?
Triste mistério num coração ao acaso,
cavalgando num peito neutro
onde se rebelam forjas de emoções
e o auge de propósitos desconexos.
Não me olho, não me entendo
sou eu e toda a gente numa mesma existência,
numa sublevação obscena que me envergonha.

E agora?
O mistério para onde caminho
há-de trazer-me a punição por não vislumbrar o horizonte
e ter a mente desencontrada.
Não comando o futuro
mas sei de endereços
que ainda festejam quem amam,
e têm a consciência de todas as alegrias.

E agora?
Agora vou escrever-lhes a falar de todas as coisas
e libertar-me de um remetente que se sente a saque.
O meu!

(Ó vazio, parte e não peças licença!)



JFV

 

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Bela é a noite que te recolho


Bela é a noite que te recolho,

depois de um sonho tão preciso.

Entraste nele e disseste:

Este é o meu refúgio,

o meu ancoradouro.

O meu sono é o mar

do teu amor vagabundo.

O teu barco são os meus olhos,

O teu mar as minhas lágrimas.

Volto a sonhar

o quanto é bela a noite que te recolho.

Chegas,

e instalas o medo

de ao acordar

já não ser o teu mar,

somente um aquário

onde não cabem os olhos,

e as lágrimas são enigmas.

Separei

as ondas da tua existência

ao acordar.

22/02/2010

JFV

ABANDONEI A VILA


 1911, I and the Village, Marc Chagall


ABANDONEI A VILA


Abandonei a vila, não soube administrar a casa com os sentimentos. Misturei ambos, triturei-os até sentir sangrar o peito, culpa de ninguém, culpa de um sentir de nada que me tem arrastado até à solidão. O amor não me recebeu, deixou-me à porta. Vislumbrei o hall, pequeno, vazio, apercebi-me que existiam umas escadas para o andar superior, não sei a sua dimensão, ignorei o caminho, desviei os olhos para as paredes, manchas de humidade, nalguns locais bolor, deixado por outras chuvas que não a minha, chuva de lágrimas. Apesar de haver tido o cuidado de esconder a paixão, tenho-a escravizada. As minhas lágrimas são como comboios, apitam nas curvas, ninguém vê, escutam-nas ao longe. São minhas! Avisam que aí vêem com olhos de carvão, se elas soubessem como são sagazes, como são lúcidas. Em segredo!
Sempre me movi entre quartos arrumados. Os vidros das janelas a deixarem ver o que vai por fora. Este hall é portador de fantasmas, nenhum sentimento, o ar quente alastra pela cal, obsessivamente. Esta casa ao fim da vila sempre me fez estremecer de medo. Sei-o agora! Quase nada do que lá vivi foi perfeito, foi uma casa de enganos, de corpos vestidos de pássaros, que rapidamente bateram asas. Corpos sem contornos, corpos de memórias deslumbradas e mórbidas.
Não me parece possível comunicar.
Em precário silêncio viro as costas e fecho a porta.
Sinto na boca as palavras que não quiseram ouvir. Recuso a calúnia. Cada gesto, cada passo, abre uma cratera na rua, para não mais voltar, para ninguém mais me levar.
Abandonei a vila, a vida de infância tocou-me no meu quotidiano, enchendo-me ao de leve com a esperança que a distância que me separa dela seja uma viagem pequena.
Amar numa casa de campo fez com que me aparecessem fissuras em redor das ideias… Mas não estou triste, vou a caminho de encontrar domicílio certo onde o medo das palavras dos outros não tenha dicionário próprio nem interpretação personalizada.
O coração tornou-se um mapa decifrável. Aqui, na vila ou numa cidade grande o importante é não permitir que se confunda auto-estradas com estradas secundárias, até porque atalhos todos conhecem.
Quando me voltarem a perguntar porque abandonei a vila a resposta está simplificada:
-Porque tenho esperança que o medo das palavras não passe do hall de entrada de uma qualquer casa de uma qualquer vila. Aí, regressarei já sem crateras na rua e subirei as escadas para o andar superior.
Depois, depois que o medo que fiz meu se esqueça que teve significado.




10/03/06

JFV
in Revista de artes e Ideias n.º 8, «O Medo», Coimbra: Alma Azul, 2006

Vi-te sentada no poial de uma estrela





Para Ana Vassalo

Vi-te sentada no poial de uma estrela,
apanhavas fresco.
Foi num serão quente,
tão quente que o sol envergonhado
fugiu quando a lua se aproximou.

Tinhas um chapéu, lindo,
feito de raspas de nuvens.
Vestias saia de luar, esplendorosa.
Esvoaçava quando a brisa se manifestava,
formando bandeiras que saciavam
a calma do céu.
Janelas, portas, postigos
abriam-se para que entrasse
a brisa vinda do teu respirar.

Do alto da humanidade
enviaste-me o ar
que me faltava
para falar contigo,
como se de eternidade se tratasse.

Vi-te sentada no poial de uma estrela,
e a criança que ainda sou
adormeceu no teu regaço de glória
esperando que o ar fresco
me sossegasse na tua amizade.
Recordo-me que o teu chapéu, lindo,
feito de raspas de nuvens,
refrescou-me.
Vi a noite esvoaçando
e o mundo que nos fala.

JFV

29-04-2012

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Um ano a mais, nada de mal...




Um ano a mais, nada de mal...

Mortos-vivos
seguiram-nos pelo sangue
e por todo o caminho são
que não percorremos.

Um ano a mais, nada de mal...
Perdemos a essência
de um país
e sobrevivemos
ao uivar de um lobo curvo
foragido da alcateia.

Um ano a mais, nada de mal...

Continuamos com a pele
em tom natural,
(o musgo cresceu-nos apenas nos olhos).
Os lábios
teceram cólera e dor.

Um ano a mais, nada de mal...

Não nascemos para andar
a pastar,
nem para nos levantar da cama
sem lavar a fome,
ou sem dar uma gargalhada
ou um grito.

Um ano a mais, nada de mal...

Um ano que chora, chora...
e rói-nos a vida que deixamos entreaberta,
por onde entrará um novo ano
que nos levará da náusea à conquista.

Um ano a mais, nada de mal...

No caixão os vampiros
fizeram um ano a mais.
Nada de mal se por lá permanecerem
com uma estaca no coração.

28/12/2012

JFV

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

ESTOU PREGADO NO SONHO

ESTOU PREGADO NO SONHO

Estou pregado no sonho.
Braços abertos,
Pregos nos sentidos.
Quero salvar a alma
E não consigo.
O sono sonha mal!
Luta de almofadas,
Lençóis que me estrangulam,
Cobertores tapados de agonias
A cobrir o pecado dos amantes
Esquecidos que têm corpo.

Estou pregado no sonho.
Mente lunática
De coroas de espinhos,
Sangrando o passado de ontem,
Confirmando as duvidas
De uma existência a dois
E de uma cabeceira em cruz.

Almofadas
Lençóis
Cobertores
Objectos que sentem
O sangue, suor e lágrimas
Dos amantes que se esquecem
Que continuam a ter corpo
Em confissão.

Estou pregado no sonho.
Crucificado na engrenagem
De um sonho que não regressa
Sonhos-lembranças
Sonhos-reza
Que todos desejam
E poucos conhecem.

Sou o homem-só
De braços cruzados
Desperto do sonho
Sem absolvição.
A amar o amor que não regressa
Nem com a ressurreição.

Os meus pregos
E coroa de espinhos
São objectos em sonhos distintos!

JFV

É!







É!
É o sentimento que simples
tudo me diz.
Costurado por pontos pequenos
na bainha do meu peito,
deixou a marca dos grandes momentos.
É o amor que culpo?
É!

JFV

Como me chamará o Alentejo?

Museu de Arte Popular, Sala do Alentejo, pintura mural de Estrela Faria (vista parcial)


Como me chamará o Alentejo?

Se um dia regressar
O filho de um tempo parado
Sem ter na mão um arado,
Como me chamarás?

Queria o céu,
Fugi da terra,
Fiquei entre caminhos.
Eu sim-Eu!

Ando órfão de paisagem,
Um pássaro mortificado,
De penas pretas, cansado.
Como me chamarás?

Queria o pão,
Fugi do trigo,
Cheguei a uma seara agreste.
Eu sim-Eu!

Sou uma planície vazia,
Preciso que me semeies,
Que me digas como irei.
Como me chamarás?

Queria o cimento
Fugi do barro,
Fiquei um molde inacabado.
Eu sim-Eu!

Se um dia regressar,
Como me chamarás Alentejo?
Filho?
A mim sim- A mim!


Olhão-10/02/2010


Rainha das dores



La Lune Verte by Joan Miro




Rainha das dores

Esquecido de mim
Afundo-me nas noites
Caprichosas,
Que soltas me repousam
Numa imensa lua
De uma vida inteira.

Rainha das dores
Ao trancar da noite.

A luz que já me iluminou
Perdeu-se no fundo do céu
Minguando os horizontes,
Dizendo um adeus por mim.

Lua, nesta noite de escuridão
Fizeste de mim
O anoitecer antes da noite.

Bebi o luto do astro.
Bati à porta das estrelas
A pedir que iluminassem
O soturno mistério
Que te levou a esconder
Atrás da bruma
A minha derradeira tentação:
Amar!

JFV


Sentado no bar…

Sentado no bar…
À frente tenho um copo
Cheio de impressões digitais
De pessoas sem palavras nos dedos.
Refugiam-se, qual ermitas,
No recanto das recordações.
Danço com eles canções
Que cantam vida ingerida.

Em mesas afastadas
Vislumbram-se esgares
Dos muitos sentidos pêsames
Que a existência lhes foi dando.
Tantos copos tresmalhados
Desvendando o mistério do último trago.

Sentado no bar...
Ouço canções de maldizer,
Felizes por me construírem o caixão
E me bordarem a mortalha
Com pontos crucificados a néon.

Um piano cujas teclas, libertas,
Circulam entre os clientes.
Alternam notas
Que se recusam a ficarem detidas
Soprando sons em liberdade.
As mágoas, sim
Estão em cativeiro
E olham através dos olhos de um Barman
Impotente ao momento da vontade
Que tinha em aceder ao pedido
De um cocktail de rejeição.

Sentado no bar...
O som do piano entra-me no copo
(Qual assassino com vitima à vista
continua impune depois de me envenenar)
Algemo-lhe as teclas
Embrenho-me no nevoeiro do cigarro
E dou mais um trago.
O coração empresto-o ao pianista
Para acelerar tudo o que a música chora.

Escuto-o...
Numa suprema demência
As notas passam
Entre os poros e o horizonte.
Semicerro as pálpebras
E olho em direcção à porta
Que nunca me deixa chegar
À verdade da razão.

Levanto-me do bar…
E dou independência à alma.
Saio…
Afasto com as mãos o som do piano
Reparo que a minha cara foge da loucura
E trémulo guardo os restantes segredos
Que os muitos copos vazios me contaram.
No fim tudo se dissipa num chamamento:
-Táxi!
-É para?

(Como se chama a vida onde vivo?)

JFV

21/02/2012

As portas dos poetas

Para Ana Vassalo


As portas dos poetas
não têm chaves.
São mansardas abertas
ao querer do sonho,
amante do vento que iça os sentidos
e os faz ser luz
a iluminar o escuro das palavras
quando as palavras não têm fé.
Erguem-se flâmulas nos olhos da poesia
habitada pela primavera do pensamento,
esvoaçam anunciando o amor
que esteve no escuro
e na ferrugem de uma fechadura
que enclausurava a mente.
Entra o esvoaçar das ideias.
Entram trepadeiras como chicotes
a vergastarem as trevas.
Entro eu e tu e ainda tu...
vindos da terra onde as letras se casam,
deitamo-nos despejados do fingir
e o desejo é possuirmos o corpo da imaginação.
Não se bate à porta dos poetas,
entra-se e sobe-se até à mansarda
onde já as aves deixaram penas
para escrevermos o que a alma e a vida ditam.
Sem caveiras,
poesia apenas,
na procura das palavras certas.
Tanta beleza sem mistério
onde se entra
com a chave da criação.

04/01/2013

JFV

A lua deu-me esperança

A lua deu-me esperança,
iluminou o velho que de tão velho se alimentava dela.
Aproximei-me e ouvi a voz funebre
da verdade:

- Não vês lua nem velho, são sombras no teu sonho!

Se não posso acreditar no luar
então para quê andar na terra a girar,
e ver a idade a passar?

Deitei-me e fiz por esquecer a voz.

A lua é o sonho,
o velho sou eu
e já não me alimenta!


JFV

16/03/2012

domingo, 20 de janeiro de 2013

Duelo






Duelo

Acerto de contas:
Bang...Bang...

Dois tiros nos separam.
Um disparado pelo asfalto onde nos sentámos
enquanto crescia a mentira,
outro...
um tiro perdido
vindo do cano da lama
moldou a obscenidade
numa rua de traições.
Os transeuntes passam adiante
sem reparar em como o fuzilamento
a que nos expusémos
fizeram dos olhos e do coração
um tunel sangrento
por onde as balas do desgosto
penetram e fazem morrer
o sentido da vigília que preferíamos
quando o que implantámos
foi a nossa submissão
ao não sentir a verdade.

Acerto de contas:
Bang...Bang....

Dois tiros nos separam.
Fui atingido pelos avisos sem o saber,
...tu pelo desejo de incendiar a libido.
Implacáveis os transeuntes continuaram a passar
indiferentes ao choro que marcava o compasso
sangrento de um coração a bater.
Sinto ainda o cheiro a pólvora
saindo dos poros da vida
que entregámos ao nada de ninguém
para satisfazer os corpos
que se fizeram bandidos na relação.
Levantámo-nos...
Costas com costas...
lágrimas nos olhos...
caminhámos em sentido inverso,
voltámo-nos quando ouvimos as últimas batidas
do coração abandonado no asfalto...
Bang...Bang...

Afinal,
o acerto de contas
é tão frio como a prisão
onde encarcerámos o amor.

JFV

15/01/2013



Pintura: CORNEILLE