quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Por aqui...



(Autor desconhecido)


Por aqui voam pássaros sem asas.
Têm arame no cérebro que interpretam como sabedoria.
Pobre o ninho que os acolhe, já que tornaram a natureza
num campo de concentração de ideias.

JFV

27/02/2013

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Carrossel




Carrossel by Justine Ivu




A memória entrou em greve. O futuro agradecer-me-á por isso. Com excepções pontuais (poucas).
Num qualquer lar de idade indefinida, ou numa casa que na altura me parecerá estranha, terei decerto um momento de lucidez antes de me cerrarem as pálpebras e depositarem flores várias sobre o peito. Escolham flores brancas, quero dormir o sono eterno com a sensação que estou a adubar a morte de regador na mão. Delas brotarão um liquido que transferi dos olhos durante décadas, fazendo com que as flores continuem viçosas como as excepções ao esquecimento.
Só é pena não acreditar que possa semear mais memórias nem limpar o pó à fotografia de família. Essa irá amarelecendo, esquecida entre a jarra vazia com água fétida (as flores foram comigo) e um qualquer manual de como sobreviver em caso de apatia.
Ah, não esquecer de telefonar a cancelar a assinatura do jornal. Não quero que encontrem uma factura por pagar ao lado do manual, a apatia tem efeitos duradoiros e retroactivos, o que levaria uma eternidade a darem por ela.
Também não pretendo ser coleccionável numa qualquer caderneta obituário, bastou-me ser cromo em vida.
Andei diariamente no carrossel, domesticando miniaturas de pessoas sem nenhum divertimento.
Não se esqueçam de margear o vosso quintal, controlem o crescimento do que semearam. Numa dessas caminhadas colham uma flor, com ela limparei o pó à fotografia dos amigos à qual pertencem.
O vidro límpido, a moldura resplandecente, os corpos sem pose. Cada um uma pétala ombreando ao lado de um CD da Nina Simone e de um caderno de apontamentos onde escrevi a minha ultima vontade: Domestiquem as miniaturas mas não deixem de se divertir ao andar no carrossel.
Recordem que a memória mesmo em greve não sofre de amnésia.



JFV
14/07/2006

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

VOZ DE RUA



Passei ontem pelo desencanto
De uma voz que ganhava o céu.
Um cantor estendendo o canto
A tudo o que tem de seu:

O nada das noites acorrentadas
Num cartão como templo de marfim,
As bordaduras das mentes encantadas
E o sono como cama de cetim.

Pouco é, para quem é rochedo.
Não houve aplausos no que vi:
O embate do sonho com o medo,
A fome com a saudade de si.

Voz de rua que se alastra e se esgota
Nos poucos que dão atenção.
Uma canção, um poema, a derrota
De um artista estendendo a mão.

JFV

IMPASSE


  Painting by Craig Stephens



O impasse de passos
 
mal dados

atormenta a disciplina dos seres
 
bem comportados,

são pisa ovos desastrados

não saem da casca nem assustados.

JFV

sábado, 23 de fevereiro de 2013

LABIRINTO DE TORMENTOS



Entwined by Graham Mattheus

Não, não sabia que amar
È um labirinto de tormentos,
Uma armadilha montada
Aos corações não atentos.
São descritos em poemas tristes
Amantes de todos os tempos.

Romeu e Julieta,
Pedro e Inês,
Tristão e Isolda.

Que dizer de Mariana que teceu
Cartas que palpitam de sofrimento,
E do seu cavaleiro francês?

Clandestinos amores como exemplo!

Não, não sabia que amar
É uma inóspita ilha,
De areias movediças
Onde o sol nunca brilha.
Ah, como invejo felizes finais
Que iluminam amores sem guerrilha.

Branca de Neve,
Cinderela,
A Bela e o Monstro.

E outros contos de magia
Que nunca erraram a nossa memória,
Nem nos livros nem na tela.

Heróis que ficam sempre bem na história!

Encontros e desencontros,
Realidade e ficção.
Feliz,
Infeliz…
Amar é o choro e a alegria
Em comunhão!

JFV

Ecoam sinos...

 

  The Bells, Bells, Bells by Brenda Ferguson



Ecoam sinos...
Possuem-me a toda a hora...
O coração é agora uma igreja
onde só entram os infiéis.

JFV

23/02/2013

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Vejo tristeza no sol






Vejo tristeza no sol preso a um céu
que já não é seu.
Chora um choro quente
tão de repente
...faz-se noite de dia
dentro de si
e de mim.

Somos irmãos na cobardia
de escurecermos
o que não soubemos viver.
Ontem ele ainda era rei
e eu homem.
Deixamos transparecer
a inglória de sermos
a tristeza de hoje.

Terei-eternamente-de o pôr
a acompanhar-me no céu
que não é o meu.

Amanhã
pela manhã
voltarei a chamar rei ao sol.
E a mim?

 
JFV

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Hoje não me pertenço




Hoje não me pertenço,
Nem à minha vontade
Nem naquilo que penso.

JFV

Hoje não



 Homem amarelo_Souza Campus


Hoje não me peçam palavras com sentido
Deixem-me falar com o silêncio
O que brilha num fundo incerto,
privado de coragem.
Hoje não.
Não me distraiam construindo frases
que partiriam sem nada dentro.
Deixem-me estar na capela minúscula que construí com folhas brancas
Ajoelhado perante o poema crucificado
enquanto rezo uns papéis-nossos
que nunca chegarão a ver o céu da poesia.
Hoje não
A porta da sentidos está fechada.
Enquanto isso, voo até à negação da escrita
e renuncio ao empenho da pena.
Hoje não
Hoje a vontade diluiu-se num discurso sem companhia
e numa procura que me levou a não encontrar caminhos
que me indiquem onde encontrar a musa do hoje sim!

JFV

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Não me ames





Man alone by hotpinkavalanche



Não me ames.
Mato todos os sentimentos
que não se parecem com o que sinto:
a sensação de ser restos de alguém
que um dia existiu.

Não me ames.
Segreda para ti o amor
porque conquistar-me
é o não pensar no abismo
e nos cardos de um nós possível

Não me ames.
Fecha os olhos e sente-me
como uma cascata de dor
a cair-te pelos olhos.
É isso que te manterá com vida.

Não me ames.
Imagina-me uma calçada
a ser pisada por todas as partes de ti,
onde o meu querer
é impossível quantificar
já que sou todas as pedras.

Não me ames.
Arrasto comigo o sangue
que brota do engano
e das chagas do passado.
Não queiras que turvem
os beijos que nunca te darei.

(Pudesse eu ainda ter lábios
para te dizer o que sente o coração,
sem ter de fugir de mim.)


JFV

18/02/2013




domingo, 17 de fevereiro de 2013

A Leitura


A leitura, 1924
Fernand Léger ( França, 1881-1955)



Num cemitério de ideias

jaz o silêncio

das palavras

que enfeitam

campas de livros.


No túmulo onde da terra

brotam versos

enviados por anónimos

surgiu o teu:

Poesia!

(Heroína da minha alma ressuscitada)

JFV

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Não se pode descansar


Tenho os braços cruzados,

E o alambique apagado,

Oiço Sabina e correm-me,

Sons pelas veias.

Palavras pelos sentidos,

Duras como as armas,

Que nos apontam

À triste forma de vida.

Soam tiros directos à revolta,

Que braços são estes

Que cruzados nada fazem?

Que bruma é esta

Que não nos permite

Enxergar como a vida...

É um alvo?

Por vezes, triste

Por vezes, alegre.

Por vezes coisa nenhuma.

"Magdalena" encostada

A um candeeiro de cigarro nos lábios.

Insegura de um encontro pago.

Os milagres, mesmo os de amor

Dão lucro ou prejuízo?

Não se pode descansar,

Tenho os olhos abertos,

E o alambique apagado.

Oiço Martírio e contínuo

A injectar som nas veias.

Palavras que ferem,

Duras como as armas,

Que aterrorizam

Até as alegres comadres,

Juntas numa esquina do presente,

Recebem notas que não pagam nada.

Que olhos são estes

Que abertos nada vêem?

Que bruma é esta

Que não nos permite

Enxergar que a sorte

Não bateu à porta?

Por vezes triste,

Por vezes, alegre,

Por vezes coisa nenhuma.

“La bien pagá” encostada

A um muro de murros.

Segura de que as pernas

Não serão o escudo da (má) vida.

Nem os milagres,

Mesmo os de amor,

Darão lucro!

Quando, finalmente,

Tentamos descansar,

Alguém dispara coisa nenhuma.

JFV