Carrossel by Justine Ivu
A memória entrou em greve. O futuro
agradecer-me-á por isso. Com excepções pontuais (poucas).
Num qualquer lar de idade indefinida,
ou numa casa que na altura me parecerá estranha, terei decerto um
momento de lucidez antes de me cerrarem as pálpebras e depositarem
flores várias sobre o peito. Escolham flores brancas, quero dormir o
sono eterno com a sensação que estou a adubar a morte de regador na
mão. Delas brotarão um liquido que transferi dos olhos durante
décadas, fazendo com que as flores continuem viçosas como as
excepções ao esquecimento.
Só é pena não acreditar que possa
semear mais memórias nem limpar o pó à fotografia de família.
Essa irá amarelecendo, esquecida entre a jarra vazia com água
fétida (as flores foram comigo) e um qualquer manual de como
sobreviver em caso de apatia.
Ah, não esquecer de telefonar a
cancelar a assinatura do jornal. Não quero que encontrem uma factura
por pagar ao lado do manual, a apatia tem efeitos duradoiros e
retroactivos, o que levaria uma eternidade a darem por ela.
Também não pretendo ser coleccionável
numa qualquer caderneta obituário, bastou-me ser cromo em vida.
Andei diariamente no carrossel,
domesticando miniaturas de pessoas sem nenhum divertimento.
Não se esqueçam de margear o vosso
quintal, controlem o crescimento do que semearam. Numa dessas
caminhadas colham uma flor, com ela limparei o pó à fotografia dos
amigos à qual pertencem.
O vidro límpido, a moldura
resplandecente, os corpos sem pose. Cada um uma pétala ombreando ao
lado de um CD da Nina Simone e de um caderno de apontamentos onde
escrevi a minha ultima vontade: Domestiquem as miniaturas mas não
deixem de se divertir ao andar no carrossel.
Recordem que a memória mesmo em greve
não sofre de amnésia.
JFV
14/07/2006