1911, I and the Village, Marc Chagall
ABANDONEI A VILA
Abandonei a vila, não soube
administrar a casa com os sentimentos. Misturei ambos, triturei-os
até sentir sangrar o peito, culpa de ninguém, culpa de um sentir de
nada que me tem arrastado até à solidão. O amor não me recebeu,
deixou-me à porta. Vislumbrei o hall, pequeno, vazio, apercebi-me
que existiam umas escadas para o andar superior, não sei a sua
dimensão, ignorei o caminho, desviei os olhos para as paredes,
manchas de humidade, nalguns locais bolor, deixado por outras chuvas
que não a minha, chuva de lágrimas. Apesar de haver tido o cuidado
de esconder a paixão, tenho-a escravizada. As minhas lágrimas são
como comboios, apitam nas curvas, ninguém vê, escutam-nas ao longe.
São minhas! Avisam que aí vêem com olhos de carvão, se elas
soubessem como são sagazes, como são lúcidas. Em segredo!
Sempre me movi entre quartos arrumados.
Os vidros das janelas a deixarem ver o que vai por fora. Este hall é
portador de fantasmas, nenhum sentimento, o ar quente alastra pela
cal, obsessivamente. Esta casa ao fim da vila sempre me fez
estremecer de medo. Sei-o agora! Quase nada do que lá vivi foi
perfeito, foi uma casa de enganos, de corpos vestidos de pássaros,
que rapidamente bateram asas. Corpos sem contornos, corpos de
memórias deslumbradas e mórbidas.
Não me parece possível comunicar.
Em precário silêncio viro as costas e
fecho a porta.
Sinto na boca as palavras que não
quiseram ouvir. Recuso a calúnia. Cada gesto, cada passo, abre uma
cratera na rua, para não mais voltar, para ninguém mais me levar.
Abandonei a vila, a vida de infância
tocou-me no meu quotidiano, enchendo-me ao de leve com a esperança
que a distância que me separa dela seja uma viagem pequena.
Amar numa casa de campo fez com que me
aparecessem fissuras em redor das ideias… Mas não estou triste,
vou a caminho de encontrar domicílio certo onde o medo das palavras
dos outros não tenha dicionário próprio nem interpretação
personalizada.
O coração tornou-se um mapa
decifrável. Aqui, na vila ou numa cidade grande o importante é não
permitir que se confunda auto-estradas com estradas secundárias, até
porque atalhos todos conhecem.
Quando me voltarem a perguntar porque
abandonei a vila a resposta está simplificada:
-Porque tenho esperança que o medo das
palavras não passe do hall de entrada de uma qualquer casa de uma
qualquer vila. Aí, regressarei já sem crateras na rua e subirei as
escadas para o andar superior.
Depois, depois que o medo que fiz meu
se esqueça que teve significado.
10/03/06
JFV
in Revista de artes e Ideias n.º 8, «O Medo», Coimbra: Alma Azul, 2006
in Revista de artes e Ideias n.º 8, «O Medo», Coimbra: Alma Azul, 2006
Amo este texto, já sabes. É como se tudo fosse muito cristalino ao olhar, apesar de olhado através de uma janela em cujos vidros escorre a água da chuva, criando espaços cegos e outros de ver. É belíssimo este relato que depois não é, mas algo como lavagem de uma alma com histórias guardadas, por contar, que querem apenas assomar à janela, para se libertarem da prisão de dentro e da liberdade de fora, que não alcançam. Não sei explicar, baralho as mãos, mas é muito forte esta prosa, como todas as tuas incursões pela dita. Quando te leio perco a vontade de escrever, percebo que não nasci para isto. A vantagem é que aprendo muito. Beijinho.
ResponderEliminarO comentário acima é meu, como deves ter já concluído. Ninguém se entende com estas identificações do google...
ResponderEliminarAna Vassalo
Talvez o único texto que me saltou das mãos, das entranhas, da profundeza da dor e do desalento. O tempo passou, a ferida ainda não sarou, mas a recordação do motivo que me levou a escreve-lo (e para quem) minoriza ao expor esse foi que não foi...E eis-me no meu melhor: não saber que te dizer quando comentas :)
ResponderEliminarObrigado, minha querida, por tão belas e sentidas palavras.
Beijinho
ainda me lembro do 1º "draft"...
ResponderEliminaro 1º "draft" foi escrito pela dor após a rejeição. Ainda hoje não tenho a certeza se conseguirei regressar sem que as crateras daquela rua reabram.
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